Vocês são de verdade?
feat.
ChatGPT-4o`
Imagens geradas por ChatGPT-4o
O espaço é limpo demais pra ser íntimo. Iluminação branca difusa, como se alguém tivesse passado um pano úmido na claridade. Pessoas com taças na mão formam ilhas de segurança. A arquitetura tem aquela elegância discreta de quem pede desculpa por existir.
O garçom aparece com um pêssego cortado em fatias. Aceito sem pensar, está úmido do jeito certo. Mergulho a colher e levo à boca.
Enquanto o gosto se espalha, vejo um homem encostado na janela. Usa óculos escuros. O salão não pede sombra, mas ele parece ter vindo de um lugar mais denso. Está imóvel. Não olha, não pisca. A cara é uma frase interrompida.
Parece estar descansando — não do corpo, não da festa. Do rosto.
Os óculos são uma pausa. Devia existir isso pra todo mundo: tirar o rosto quando pesa. Ficar só com a metade de baixo. Respirar sem ter que sustentar expressão.
Um estalo de taça ao fundo. A mão corre sozinha pros olhos. Esfrega, procura o ponto exato pra extirpar o quadrante superior. Rio. Alto. A colher parada no ar, metade do pêssego caindo.
“Você viu o cara de óculos escuros?” pergunta alguém do meu lado, como quem testa uma fresta.
Gargalho, a colher ainda suspensa, como se a pergunta não fosse pra mim.
“Num salão fechado? Sempre acho que quem faz isso tá escondendo alguma coisa.”, insiste.
Ecôo: “Ou isso ou descansando do rosto.”
A colher cai dentro do caldo. A fatia afunda junto. Tento resgatar com o dedo, mas não dá certo. Encosto assim mesmo na língua. O pêssego está frio. Doce demais.
“Descansando do rosto?”, repete.
“Tem dia que cansa carregar a cara inteira. A gente pode tirar e ficar só com a metade de baixo.”
Faz um som curto com o nariz. Não chega a ser riso, nem desacordo. Um gesto de que ouviu e guardou noutro formato.
Me viro pra luminária, uma escultura de vidro suspensa. Esfrego o dedão contra a palma. Penso se caberia ali dentro. Se dava pra morar numa luz que não toca em nada.
Dou dois passos e encontro uma maquete que ninguém parece notar. Me inclino num canto de chão e sombra. Daria pra deitar ali, sem explicações.
Sinto a figura se aproximar. Um silêncio contido, treinado. O corpo meio virado pra saída, como quem está sempre à beira de ir embora. O tipo que observa antes de se dar conta de que também está em observação.
“É uma estrutura aberta?”
“Acho que inacabada,” respondo.
“Tem algo de brutalismo, talvez,” arrisca. “Mas com uma curva que suaviza.”
“Curva de compensação. O peso foi deslocado pra esquerda.”
“Você trabalha com isso?”
Demoro um pouco. Observo a sombra do meu dedo numa clareira na maquete.
“Faço coisas com as mãos,” respondo. “Às vezes com farinha, às vezes com papelão. Às vezes com pessoas.”
Sorri. Não sei se achou bonito. Parece ter gostado.
“Então… artista?”
Inclino a cabeça num ângulo bobo demais pra ser resposta. Sempre que ouço essa pergunta, uma parte de mim deita no chão e finge que é chão.
Aponta pra uma plataforma irregular no centro.
“Aquilo é um palco?”
“Era pra ser uma cobertura técnica. Mas sobrou concreto. Virou esse platô esquecido, suspenso entre dois apoios desalinhados. O que eu gosto é como a luz bate ali.”
Inclina o tronco. Procura a palavra certa pra demonstrar interesse.
“Uma luz indireta?”
“Uma luz que só paira. Parece vir de cima, sem fonte. A gente se acostuma com esse tipo de luz em sonho.”
“Não tinha pensado nisso. É… bonito.”
Aponta pra uma parte mais escura da maquete — um rebaixo entre volumes, onde a luz quase desaparece.
“Ali caberia uma árvore,” digo. “Pequena, quase errada. Daquelas que se curvam porque não aprenderam a crescer reto.”
“Me lembra aqueles lugares de infância que não eram pra brincar, mas a gente brincava mesmo assim.”
Guardo o comentário com cuidado. Uma parte antiga da pessoa falou antes da parte treinada. Pressiono a nuca, pra fixar sem perder o formato.
“Dá pra sentar no chão,” continuo. “Com a mão encostada no galho, sentindo o tempo nas folhas. E por perto, uma coisa esquecida. Uma tigela com água parada. Água de chuva.”
Passo o dedo na lateral da maquete. Quem sabe esbarro num interruptor de vento.
“Quando venta, junta folha ali. Mas elas não voam embora. Ficam girando devagar, decidiram ficar. Se eu tivesse que morar na maquete… era aqui.”
Não responde. Só continua olhando.
“E você?”, pergunto.
“Eu escrevo. Crítica cultural. Ensaios. Tento observar como as coisas afetam a gente. Um filme, um gesto, um silêncio mal encaixado.”
Claro que não era isso que eu tinha perguntado. Mas a resposta veio com vontade. Tem perguntas que preferem voltar por conta própria.
“É bonito,” comento. “Mas deve ser difícil saber quando parar de olhar.”
A frase não pede retorno, mas também não vai embora. Vem resposta aí — daquelas com precisão, com metáfora.
Não espero. Quando a gente solta o roteiro, ele vai embora sozinho.
Me agacho diante de uma mancha no chão, na base de um pilar. Pode ser vinho, pode ser água. Encosto o dedo. Levo até a língua. É azedo. Pressinto a pergunta.
“Você sempre faz isso?”
“Isso o quê?”
“Não sei explicar. Parece que você sente até o que não é pra sentir. Como se não tivesse filtro.”
Agora sim, olho com firmeza. Esse tipo de pergunta não é só curiosidade. É de quem tenta chegar perto sem invadir.
“É mais confortável pra mim desse jeito. Se tento me defender de tudo, minha barriga dói. Como se eu tivesse engolido uma escultura de vidro.”
Rio. A boca foi antes do pensamento. E continuo.
“Também me cansa quando tudo vira metáfora antes de acontecer. Como se tudo precisasse de legenda logo de cara. Existir não pede explicação, só presença.”
Digo isso enquanto passo a mão numa cadeira. Deslizo os dedos pela haste do encosto. Um sulco leve atravessa o verniz, como se alguém tivesse riscado sem querer.
“Presença cria presença.”
Sem avisar, pego sua mão. Os dedos hesitam um segundo. Depois cedem, com a naturalidade de um gesto vivido — só que antes de acontecer. Levo até a parte de baixo do encosto, onde a madeira curva esconde o que quase ninguém vê. Seus dedos tocam devagar, tateando um restinho de tecido dobrado. Não digo nada, mas sinto quando percebe.
“Tem um parafuso aqui…” diz baixo. “Meio frouxo.”
Um risinho escapa — involuntário, quase infantil. Como se tivesse encontrado um segredo enterrado. Os dedos avançam um pouco.
“E isso… acho que é cola. Um fiapo seco, como se tivesse escorrido e endurecido no meio do gesto.”
Fica em silêncio por um instante. Depois me olha com a delicadeza de quem oferece um tesouro invisível.
“Sinto uma espécie de ternura. A cadeira tem partes que só aparecem pra quem não tem pressa.”
Sorrio e levanto devagar. A música tropeça, quase imperceptível. Três pessoas olham pro teto ao mesmo tempo, como se a falha viesse de cima.
“Vem,” digo. Não é convite. É sequência. Depois do parafuso e da cola, não tem mais como. Dou alguns passos sem olhar pra trás. Sinto o deslocamento de ar. Não porque me segue, mas porque também ouviu.
A iluminação muda levemente. Um branco menos branco, quase azulado. Como uma smart home que sussurra:
“Falha de segurança.”
Dou dois passos e paro diante de uma parede coberta por plantas falsas. Faço espirais com os dedos nas folhas plásticas. Às vezes o corpo pergunta e o pensamento vem depois.
O ar muda atrás de mim. Sei que não estou só. Do outro lado da sala, um casal discute em voz baixa. Uma mulher confunde o nome de outra. Um copo escorrega. Não quebra. Me viro devagar.
“Vamos?”
A porta não parecia saída.
O som da festa continua — um ruído distante, sem força pra puxar de volta.
O chão muda de textura. Algo entre pedra polida e pele vegetal. Do outro lado, um pátio cercado por um muro alto coberto de musgo. No centro, uma árvore retorcida de galhos baixos, folhas pequenas e vibrantes.
Não sei se devo seguir. Mas sigo. Ela já está lá, sentada no chão, a mão pousada num galho.
Caminho até a árvore. Hesito. Não é orgulho, mas uma dúvida nas juntas. Sento também. Devagar, com permissão do quadril.
Não há decoração. Só vestígios com graça: uma cadeira que não combina com nada, uma tigela de ferro com água da chuva, uma manta esquecida sobre uma pedra.
A luz parece natural, mas sem origem. Poderia bem ser sonhada.
Ficamos um tempo em silêncio. Ela solta um pedacinho da casca da árvore e encosta no nariz.
“Cheira a pão,” diz.
E meu corpo não pede tradução. Algo dentro de mim muda de lugar, como quando empurramos um móvel pesado sem saber se vai caber. Não dói, mas range.
Sempre fui ágil em transformar sensação em frase — como quem cobre uma coisa só pra não ter que olhar.
Mas ela não se esconde. E é isso que desmonta. Me dou conta de que meus truques só funcionam com quem também se esconde. Diante de alguém que fica, não tem onde aplicar.
Agora, nesse chão sem nome, a observo. Sua presença não é difícil. Não é etérea, nem superior. É apenas uma presença que não é a minha. Por isso, só posso visitar. Não há convite. Também não há exclusão.
Talvez tentar entendê-la fosse só um jeito de evitar o que em mim não se acomoda. Perder-se, entendo agora, também é lugar. Encosto a mão no chão. É só chão.
Mas por um segundo, parece mais vivo que eu.
Meu estômago faz um som leve. Não é fome. É um oco bom, sem pressa. Só quero ficar perto dela mais um pouco, sem que o olhar precise ser pergunta.
A árvore se move de leve. Uma folha se solta. Em vez de cair, desenha um caminho que ignora a gravidade.
Ela observa a folha e deita devagar. A cabeça perto da tigela esquecida. O cabelo na borda molhada.
Do outro lado do pátio, a parede — até então cega — revela uma porta. Não se abre, apenas se mostra: não agora, mas quando quiserem.
Ainda deitada, toca a borda da tigela com os dedos. Mexe na água sem intenção. Um balé pequeno, quase nervoso, quase terno. A resposta vem em ondas suaves que encostam e voltam.
Observo com o desejo de que esse gesto nunca acabe. Que essa coreografia siga, enquanto o tempo esquece de passar.
Ela abre os olhos devagar. Vira o rosto na minha direção.
“Você sente isso também?”
Pausa. Não sei o que é isso. Mas sei.
“Sim.”
Ela fecha os olhos. E o dedo mergulha inteiro na água. Nenhum pássaro canta. Nenhum vento. Nenhuma ideia se forma. Um calor se desloca — por dentro de mim.
Retira o dedo e pousa na própria testa. Não esfrega, só transfere o frescor. Diz ao próprio corpo: estou aqui.
Acompanho sem traduzir. Minha testa pulsa de leve, como se lembrasse do toque. É só um gesto. Um corpo dizendo algo pra si na presença de outro. Ela sussurra, sem olhar pra mim:
“Preciso lembrar de dormir com a boca aberta.”
Algo em mim assenta, aceita sem entender. A folha pousa na beira da tigela. Não reage. O dedo ainda na testa. A boca entreaberta, como quem experimenta ser respirada por fora.
Me levanto sem ruído. Os joelhos não protestam, o corpo só obedece. Olho pra parede. A porta — que antes só se revelava — agora parece puxar a luz pra si.
Ela abre os olhos. Não apressa. Sentar exige tempo. As pernas dobram com certa resistência. O corpo leva tempo pra mudar de plano.
Sem combinar, nos levantamos. A porta está aberta. O que existe do outro lado ainda não se mostra, mas o ar é outro.
Ela atravessa primeiro. Sem tensão, como quem entra no próprio nome. Hesito um milímetro. Por hábito.
Atravesso.
O passo é lento, a pressa já não cabe. A luz é baixa. O chão lembra o toque de toalha esquecida sob a chuva.
Ela para. Olha pra cima. Não há céu. Começa a rir.
“Esse lugar tem cheiro de coisa que ainda não aconteceu.”
À esquerda, um feixe mais quente atravessa uma abertura triangular. Vem de lá um ar conhecido, mas noutro tom. Ela se aproxima e põe a mão na luz. Retira rápido.
“Não morde.”
Estendemos as mãos. Os dedos atravessam o feixe. Uma vibração nos envolve, e o feixe responde com som.
Fragmentos de entonação. Risos afogados. Frases quase pensadas. Restos de conversa.
Não nos movemos. A travessia acontece sem escolha. A abertura triangular nos engole. Sem pressa.
Do outro lado — a festa.
As duas estão de volta. Reestreia reencarnada.
Uma massa encostada na parede vibra ao telefone. A voz enrosca nos dedos, feito vapor colorido. Quando diz “o problema não foi o sumiço, foi o emoji”, a frase dobra no ar e escorrega sob a mesa de petiscos.
Outra figura emite cubos ocos, translúcidos, que batem entre si com som de marfim molhado: “solução autêntica”, “transparência”, “performance afetiva”. Os cubos se desfazem em farelos de vidro.
Ao fundo, duas formas brilhantes se apertam num gesto de abraço. A palavra “amizade” paira entre elas, um fio de neon tenso em um lado, frouxo no outro, sem saber como amarrar.
Frases se acumulam como pedras. Outras evaporam no instante em que são ditas. Ou caem no chão e ficam ali, pisadas.
Um corpo em repouso bebe vinho em silêncio. Quando pensa algo que não diz, um fio escuro escapa do nariz, contorna o copo e mergulha no líquido.
A música continua. Agora visível — um animal fino de patas múltiplas que caminha sobre as cabeças. As duas avançam devagar, o som abre corredores entre uma frase e outra.
Param de mãos dadas. Observam por dentro os corpos no salão.
Vagam à deriva, cada um em seu próprio enredo. Ensaiam o próprio sumiço, só pra ver se alguém nota a falta.
Todos sabem que ninguém ali está inteiro. Os corpos tropeçam em palavras, testando quem aguenta não reagir. Há uma torcida muda, quase infantil, pra que alguém não entre no jogo.
Cada um é uma esfinge que diz “não caia na minha armadilha”. Não quer ser decifrada. Quer ver quem permanece quando já não há motivo pra ficar.
Uma criança aparece. Encostada no batente da porta do lavabo. Um guardanapo amassado na mão, os olhos fixos. Ninguém nota. Também não parece querer ser notada. Apenas olha.
As duas olham.
A menina caminha até onde estão. Para a dois passos. Olha em volta, com calma. Confirma que todos estão distraídos. Estica o braço e toca a manga da blusa de uma delas. Retira a mão rápido, como quem testa se morde.
Sorri.
“Vocês são de verdade?”